sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Cuide de você

 

"Cuide de você", era o que dizia no final de sua carta. Aquelas palavras me foram tão cortantes quanto... Bem, chega a ser difícil encontrar uma comparação para o que eu senti. Era como se, aos 10 anos de idade, me tivessem tirado a bicicleta nova e dito simplesmente: "vá a pé". Não fazia sentido, me parecia simplesmente frio que me falasse para cuidar de mim mesma. Para mim, não demonstrava carinho ou preocupação, soava, pelo contrário,  um "dane-se" camuflado, palavras duras maquiadas de conselhos na realidade totalmente superficiais. Durante toda sua narração, ele havia me responsabilizado pelo término, ao mesmo tempo em que se colocava no lugar de vítima, como sempre o fizera. No iníco (não consigo mais imaginar como), eu achava aquilo charmoso. Hoje podia entender como seu charme era vazio, baseado em uma filosofia barata. Nunca me sentira tão exposta, tão desrespeitada. Mais que isso, tratava-se de uma violência literária, de um mau uso de palavras, de um atropelamento escrito do meu coração, da minha pele. Sentia que aquelas letras haviam se juntado para atormantar-me sem prazo final, e que eu de alguma forma não era mais Sophie, não era mais mulher, era sim um conjunto de frases jogadas fora e amontoadas pelo meu corpo de forma feminina. Mas era o Bê, ainda assim. Foi com ele que aprendi a ser mulher, a calar e gritar, na mesma proporção. Juntos fomos ao Japão, à Grécia, à Praga, ao Chile, à Marte. Ele me levava para lugares que eu nunca sonhara conhecer. E hoje ele havia me levado ao inferno, com suas palavras rasas. Incrível como algo tão monótono pudera me alcançar numa profunda dor, a qual era impossível encontrar o fim - ao menos até então. Foi quando pensei que não havia de ter sido o mesmo Bê. Talvez fosse outro hoje, não se tratava do homem das fotos reveladas e expalhadas pelo meu quarto, ou daquele que cozinhava comida árabe no nosso apartamento enquanto eu ria de suas histórias. Sempre soube que ele não era o mesmo quando estávamos com outras pessoas, sempre soube que durante o nosso relacionamento, ele nunca havia sido fiel. Mas eu escolhia me enganar e acreditar que ele não encontrava mais as outras três. Não queria ser a quarta, e ele sabia disso. Me prometeu lealdade e eu escolhi crêr que seríamos felizes enquanto durasse. Escolhi confiar no homem que projetei nele, homem que na realidade, ele nunca foi. Ele havia crescido numa família aparentemente estruturada, quase banal, mas aprendeu sobre a vida completamente sozinho. Nunca aprenderia a dividir, ao menos não até que decidisse fazê-lo. Eu não poderia decidir por ele. Mas por três anos, achei que seria capaz. Quando estávamos juntos, eu me sentia inteira, amada, cuidada e única. Sentia no seu olhar uma capacidade de me sugar para o seu mundo, e eu mergulhava nele sem me segurar em nada. Voava pra dentro dele, e em cada queda, deixava que parte de mim fosse para não mais voltar. Talvez por isso, além da dor inevitável que sinto hoje, me sinta tão desprendida de mim mesma. Foram partes minhas que jamais voltarei a ver. Ficaram com ele, naquele abismo que criou.
A diferença entre a queda nos olhos de Bê e meus sentimentos ao ler sua carta, era que as palavras tinham um caráter duro, palpável e com aparência muito mais real do que minha simples sensação de ter me perdido naqueles olhos negros. Naquele momento eu "o amava e não conseguia suportá-lo, em igual medida". Era cortante. Profundamente cortante.

*Crônica baseada na exposição de Sophie Calle "Cuide de você", no MAM. Imperdível!

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