segunda-feira, 29 de março de 2010

As horas escorrem.


As horas passam. Uma, duas, três. O raio corta o céu negro, a chuva cai sobre a pele clara. Quatro, cinco, seis. A chuva não pára. Molha as flores, os rios, os carros sujos. O excesso afoga a menina, nascida em berço de ouro. A falta encobre o menino, que nem berço teve. Uma janela é fechada pelo vento forte. Logo depois, duas outras se abrem, pelo mesmo vento que soprava. O velho não corre. Já cansou. Apóia sua bengala no chão da rua, antes molhada. Sabe que tudo o que jorra, chega a um ponto em que seca. Tudo que transborda, pode cessar. Não lamenta mais o excesso de chuva,nem a sua falta, nem a rua escura, ou a claridade que cega. Não espera um tempo ainda por vir, nem suspira pelo que já não é. Senta, e contempla. Liberto das amarras temporais e ao mesmo tempo preso ao pouco que lhe resta. As horas passam.

"Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas".
Quintana. 

domingo, 21 de março de 2010

Sunshine: do lado de dentro.



O lugar chamava-se saudade. Ficava em algum ponto entre a primeira longa conversa ao telefone e o beijo roubado naquela sala. Não pense que se tratava de um caso de amor, era bem mais que isso: uma verdadeira amizade. Quem olhava de longe, enxergava apenas uma menina tímida e um cara falante que se divertiam às custas de suas diferenças. Para eles, significava bem mais. Trocavam não apenas confidências, mas conselhos regados de compreensão. Ele ouvia tudo sobre o primeiro namorado dela e ajudava-a nas provas de física. Ela foi a primeira a entrar no seu carro novo quando ele mal sabia dirigir. Dividiram leituras, filmes e viagens (em sua maioria, mentais). Engraçado como suas faltas pareciam encaixar-se e por vezes confundir-lhes. As palavras de um esbarravam na do outro e o autor já não importava: entendiam-se. Quando estavam juntos, as máscaras não só caíam, como despencavam, e as diferenças transformavam-se em longas pontes, capazes de subir e descer altas colinas. Mas de algum jeito, o tempo e uma confusão chamada desejo, pareceram esmagar a intimidade longamente construída. “Nossa intimidade era grande. Cresceu tanto que chegou até o teto, e caiu.” Era mesmo isso. Aos poucos as longas conversas resumiam-se a olhares constrangidos, os abraços sinceros a toques tímidos, e encontros semanais a esbarrões esporádicos. A relação havia ficado rasa. Ganhou tanta cor, que desbotou. Entenderam como “mais” podia mesmo torna-se “menos” e resumir-se um dia a quase nada.
Mas ela sabia que nada mudaria o peso daquele encontro, precioso como poucos. Que com ele havia descoberto certos pedaçinhos de si mesma que até hoje estavam com ela, o que significava que ele continuava ali: não perto, mas ainda assim, do lado de dentro.