quinta-feira, 20 de maio de 2010

Despertar

Encontraram-se por acaso. A sensação inicial foi de inquietação e nervosismo, seguidos de um êxtase corporal que parecia circular na velocidade da luz, percorrendo desde a testa até os dedos de seus pés. A respiração acelerava e ela pensou "tudo bem, é sempre assim, tudo bem, acalme-se, não vá deixar que ele perceba!". Aos poucos conseguiu demonstrar a tranquilidade que queria, caminhou segura em sua direção e abriu a boca para expressar todo aquele sentimento que a engolia:
- Oi, tudo bem? - Foi tudo que sua boca a permitiu cuspir. E na mesma hora pensou consigo mesma: "Quanta bobagem!" Ele respondeu alegremente, com aquele jeito só dele, de quem não tem pressa e se sente inteiramente satisfeito na companhia dela. Instantaneamente, viu-se saudosa. Iniciaram um diálogo inocente, cheio de meias palavras e tentativas frustradas de permanecer na superfície. Em alguns minutos, ele propôs:
- Vamos dar uma volta depois daqui? Só preciso pagar duas contas, é rapido. - Ela não pensou duas vezes, e balançava a cabeça concordando. Talvez a cabeça tenha balançado antes mesmo que concluisse qualquer pensamento organizado. "Sim, sim, sim", era só o que parecia brotar de si mesma quando ele surgia. Isso aconteceu aparentemente em dois segundos, enquanto ele completava - Assim matamos a saudade. - O fez de forma natural, espontânea, mas a cada palavra doce e aparentemente desproposital que ele emitia, tirava-lhe as forças. E suas barreiras, construidas com tanto vigor, iam sendo derrubadas, uma a uma.
Não se lembra ao certo o que aconteceu depois. Logo estavam dentro do shopping, fazendo o que mais parecia um pic nic. Sim, era uma idéia completamente inusitada, quem faria um pic nic dentro de um shopping?! Mas ali estavam ambos, sentados no chão, com uma certa proximidade corporal e uma sintonia emocional enorme. Era como se não tivessem se separado em momento nenhum.
Haviam pães e frutas espalhados na toalha quadriculada estendida no chão e eles não tinham pressa de nada. Ele segurou sua mão, e a acariciava vagarozamente, como quem quer congelar um momento e guardá-lo para sempre na memória. Olhava-a e ela fervia por dentro. Um casal conhecido dela passou, e ela rapidamente puxou sua mão de volta. Comprimentou-os envergonhada, e disse a ele, enquanto olhava-os ir embora:
- Eles conhecem o Miguel. - A tristeza logo tomou conta de seu semblante. Ele não disse coisa alguma, tomou-a pela mão novamente e seguiu concentrado naquele ritual mergulhado em poesia. Algum tempo depois, ouviram gritos e à volta deles pessoas corriam desesperadamente. Levantaram sem pensar e correram para fora do shopping, ela ia na frente, puxando-o pela mão. Correram para longe, cercados de horror. Num dado momento, bandidos fortemente armados os fizeram parar, assim como muitas outras pessoas que se encontravam na mesma situação. O cenário havia mudado, estavam numa casa de madeira e vidro, numa rua meio deserta. Foram todos colocados sentados no chão, sob a mira de revólveres assustadores e ameaças descontroladas. "Que dia mais maluco!", pensavam, de mãos dadas o tempo todo. Sentiam-se mais seguros, cumplices um do outro. Se fossem sentimentos ao invés de pessoas, seriam sentimentos parecidos, como doçura e pureza, ou mesmo rancor e orgulho. Eram um par ali, encaixavam-se em suas faltas. Os bandidos eram assustadores, mas algo parecia acalmá-los internamente.
De repente, o céu azul se desfez em nuvens carregadas, que vinham de baixo para cima, invadindo o horizonte. A aparência do cenário trouxe medo, uma grande tempestade se organizava com uma rapidez incrível. Todos então corriam para dentro da casa, já não era possível diferenciar bandido de gente comum. Os dois correram para os fundos e subiam as escadas tão rápido que a própria respiração os faltava. No segundo andar, quando toda a água já alagava deixando muitos afogados para trás, ele tropeçou e teve dificuldade nos passos seguintes. Ela voltou, puxou-o para cima, trazendo-o para perto de si. Continuaram mais um pouco, exasutos. Correr tanto os deixava muito cansados e com a sensação de continuar no meio daquela confusão. Era como se nada passasse, mesmo com toda aquela determinação e os passos largos. No terceiro andar, ele já estava muito fraco, e ao tentar subir caiu e um pedaço de ferro que inexplicavelmente feriu sua testa. Ela olhou para trás já preparada para trazê-lo para junto, mas perecebeu que a feriada havia sido profunda de mais, muito mais que ela pudesse esperar. Num momento de dor desesperadora, percebeu que ele já não vivia. Todo o contexto de fuga e de medo parecia se apagar, ao mesmo tempo em que se transformava em outro universo muito maior. "Morto?! Como assim?" Não fazia sentido nenhum, e ao mesmo tempo ela sabia que não tinha mais jeito. Chorava copiosamente e carregava-o em seus braços. A chuva pouco importava, e muito menos o revólver. A vida se fôra, o amor, a esperança e tudo mais que não havia sido vivenciado. Enquanto caminhava, ele ia caindo de seus braços insuficientemente fortes, e ela o deixava. "Que fique pelo caminho, então". Antes de abandoná-lo, encontrou no seu bolso um papel dobrado, mais parecido como uma carta. Que dizia:
- O pé de algodão que transforma-se em broto não vira nunca uma mangueira gigante, mas ainda assim dá seus frutos. O tempo de vida dele pouco importa. Nem toda lagarta vira uma borboleta azul piscina, mas aprende a voar de forma graciosa. Um menino do interior que sonha em ser atleta não necessariamente será "achado", mas seu desejo pode levá-lo a muitos outros lugares. Você já deve ter me entendido, como de costume. Nem tudo o que é concretizado é mais bonito, mais real ou precioso. Algumas coisas não conseguem passar da fase do encantamento, mas por um motivo qualquer, são as que deixam marcas mais profundas. Assim foi você em mim. O que vivemos e o que não vivemos tornou-se uma mistura de saudade aqui dentro. Tá aqui, bem guardado. Desejo que você tenha sempre muito amor, e que essa forma única que você tem de existir nunca deixe de tocar, como fez comigo. Sorriso largo dentro de mim por sua causa. Um beijo com um carinho interminável e uma saudade impossível de se medir.

Por dentro, um misto de dor, saudade e vazio. "Como aquilo tudo poderia estar acontecendo?" Foi quando no fundo uma música começou a tocar, bem de leve... "o peito agora dispara, vive em constante alegria, é o amor que está aqui". O som se tornava cada vez mais alto. Sentou-se num pulo. Era o som do seu despertador.

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